apêndice ao catecismo
sexta-feira, 22 de janeiro de 2021: uma hagiografia
Se eu fosse devoto de São Sebastião, eu diria que ele foi perseguido e morto por adorar o Cristo Jesus em uma época em que o cristianismo ainda estava para florescer no deserto da moral pública. Mas eu sequer sou católico. Por isso, apresentarei outro mito, inventado agora, segundo o qual o belo Sebastião foi entregue à morte porque era moço e não envelhecia, enfurecendo os homens mortais que, para não esmorecer, inventaram a pintura e a escrita, a linguagem, e, com ela, a volta à vida depois da sepultura. Homens que também se fiavam na continuidade de si através de sua prole juvenil, os filhos, os netos e os filhos e netos desses: ao ultrapassar a mocidade, eles se entregavam ao despudor do sexo artesanal, para fabricar novos vasos contendo a perdida beleza do pai. Sebastião era único e não necessitava de uma linha de produção de parentesco para sobreviver. Ele apenas vivia, despido de todo traço humano, ou seja, de traço viril, como um deus que se desfaz em carne viva.
O moço divino despertava, então, os sentidos dos mortos em potencial, que viram nele um algoz e uma vítima, não simultaneamente, antes, pois, viram um algoz com seus olhos míopes e anteviram, em uma miragem do espírito, a vítima em que ele se tornaria. Ataram, daí, o monstro gracioso a um tronco de madeira, estrutura fálica, coluna da indústria genealógica, e o açoitaram com seus instrumentos de prazer, flechadas que arrebentavam o corpo daquela perfeita criatura, porém, mais bela à medida que se humanizava. O corpo nu, sangrando, delgado, nem macho, nem fêmea, excitava as testemunhas do suplício mais do que as enojava, transtornando o desejo de vingança em tensão sexual, a tragédia em drama cômico. Eram, enfim, de um Cupido as flechas que marcaram para sempre a imagem desse ídolo, entregue ao gozo do desaparecimento material, orgasmo último da espécie humana, que, no entanto, não o matou.
Da morte de São Sebastião não há imagem para se venerar. O que se venera são representações de sua fadiga triunfal: transcendendo a carne ferida sem abandonar o corpo físico, rígido, o soldado de Roma convertido em soldado cristão se converteu, placidamente, em um soldado de barro. O divino nele morreu. O humano morreria no próximo martírio. Mas o culto ritual a essa metamorfose, cujo resultado sempre será a morte de um si mesmo pela vida de outro em si ou de si no outro, por amor ao outro, esse ainda não desapareceu. (Vejam como as rosas do jardim, arrancadas para exalar seu cheiro na humilde casa dos apaixonados, apodrecem. Elas não se queixam de dor, não coram de vergonha, não sorriem ou choram, de tristeza ou de felicidade. Essas flores encarnadas não se movem na presença das tesouras de poda do jardineiro. As rosas nada podem diante do elemento humano. A não ser impressioná-lo com a infinitude de sua beleza mórbida.)